domingo, 25 de novembro de 2007

Capítulo XIII - Pluma Rumo à Madrugada

Outras quinze noites se passam até que a presente Lua minguante adorne o límpido, claro e imensamente estrelado céu desse oceano arenoso.

- Como pode um local tão quente durante o dia ser tão gelado durante a noite ?

Desde que, membro da “Chama da Terra”, enfrentou as areias de Anauroch pela primeira e última vez, essa pergunta sempre emerge na mente de Kiren.

Talvez, se essa questão não o fizer lembrar de seu reencontro com Luke, da provação à qual ele foi exposto pelos servos de Shar, de toda dor e de todo sofrimento com o qual teve de lidar devido a essa que foi a mais malfadada de suas andanças, talvez se ele nunca mais for capaz de lembrar de tudo isso, o clérigo um dia se dedique a buscar essas respostas.

Entretanto, no atual momento, para conter algumas amplas lágrimas que parecem querer saltar de seus olhos e banhar sua face, o andarilho, mais uma vez, respira fundo, limpa sua mente e se prepara de corpo e alma para realizar as orações noturnas que costuma dedicar à sua musa maior, Mystra, a Senhora da Magia.

Ah se ele houvesse se lembrado de um outro fato...

Distraído por seu anterior devaneio, Kiren esquece o motivo dele estar muito próximo de entrar em uma profunda depressão.

Assim, o sacerdote começa a entoar suas orações e, para tal, escolhe aquele que lhe parece o mais belo cântico que conhece, realizando-o com toda sua fé. Contudo, como tem acontecido desde que recuperou a consciência nesse deserto, nada, simplesmente nada reverbera em seu interior.

Sem mais suportar o vazio, o andarilho se deixa molhar pelas lágrimas que rolam por toda sua face coberta de queimaduras em processo de cura.

Não podia acreditar. Isso não podia estar lhe acontecendo.

Abandonado ? Por sua Deusa ? Por Mystra ? Não, isso não faz nenhum sentido na mente do outrora altivo e orgulhoso clérigo.

- Por quê ? Senhora, por quê ? Serei eu um servo tão indigno ? Senhora, manifeste sua presença em meu ser... Por favor,... Não me deixe...

Concentrando-se ao máximo, Kiren consegue limpar sua mente desses pensamentos negativos e terminar suas orações da melhor maneira que ele é capaz. Aliás, no fundo de seu coração, o andarilho sabe, dedicar todo seu treinamento e toda a disciplina que ele adquiriu no templo onde foi criado e orientado é a única maneira dele conseguir realizar satisfatoriamente suas preces agora que ele não mais é capaz de sentir a presença de sua Deusa em cada mínima parte de seu ser.

Quinze Luas sob essa tortura. E pior ainda agora que Schahms poucas vezes vem a seu encontro.

- Se ao menos ele pudesse vê-la por mais tempo, acompanha-la por mais tempo, ouvir sua voz, sentir seu odor de jasmim por mais tempo, tocar sua pele por mais tempo, receber seus cuidados por mais tempo... – como um cânone, essas palavras ecoam por toda a mente do andarilho mestiço.

- Ah, Tempo, senhor da razão, arauto da sabedoria. Quanto és capaz de ensinar àqueles que podem dispor da sua companhia e de uma inteligência mais arguta... – sussurra Kiren ao cair da madrugada.

Como num encadeamento de fórmulas matemáticas, grande parte das informações que o clérigo foi capaz de absorver ou intuir nos últimos dias começam a fluir em sua consciência.

- Nômades, como os beduínos de Anauroch, mas este local não parece ser Anauroch; É bem mais quente e, se é que isso é possível, ainda mais seco.

- São realmente guerreiros extraordinários. Dois vermes gigantes da areia, ou seus similares locais, encontraram seu destino final ao cruzar o caminho desses homens e mulheres como se fossem apenas minhocas.

- Não possuem conhecimento mágico, embora seus herbalistas sejam realmente talentosos.

Não demora muito e, em meio à essa miríade de rememorações, volta à ecoar entre os pensamentos de Kiren os mais duros dos conhecimentos adquiridos.

- As bênçãos de Mystra, minha amada Senhora da Magia, não alcançam esse local.

E finalmente;

- Schahms não mais pode ficar próxima a mim; Mas por quê ?

- Será ela uma filha do líder desse grupo ?

- Será ela uma esposa dele ?

- Será ela prometido em casamento àquele que conduz esse grupo ?

- Terá sido ela interditada em relação a mim, por eu ser estrangeiro, ter a pele clara, o olho claro, ser mais esguio ? Ser mestiço ?

- Será que eu desagrado ela ? A enojo ?

- Terá ela também me abandonado ?

Preso nessa miríade caleidoscópica de pensamentos, Kiren adormece, deixando sua consciência vagar sem rumo, até que ela se perca no onírico e selvagem universo de seu inconsciente.

sexta-feira, 9 de novembro de 2007

Capítulo XII – Mergulho no Mar de Silício.

O sopro dos ventos e o som da água sendo movida dentro da bacia de barro.

O odor arenoso e o som da pele que se move sobre o áspero chão desse mar de silício.

A umidade do pano, o toque de seu tecido macio e o alívio que o contato com a água traz à sua pele.

O calor que inebria, lancinante, e o suor que exala de seu corpo, escorrendo salgado e áspero, incessantemente.

O frio cortante, que em companhia dos pesadelos que não lhe abandonam e lhe atrapalham o sono, tirando-lhe sua paz e suas forças.

O doce odor do jasmim que exalava de seu corpo, o delicado toque de pétala floral que suas mãos transmitiam, o profundo e iluminado olhar esmeraldino, a viçosa e lívida pele, do mais puro bronze, a melodiosa e agradabilíssima voz, que encantava seu corpo e alma fazendo-o devanear, lançando-o num mundo onírico de bem-estar que o fazia perder a exata percepção da passagem do tempo.

(- Ah, certamente, - pensava o andarilho - certamente eu poderia passar o resto de minha vida ao lado dela.)

Assim, por volta de dez noites transcorreram, fechando o período de uma lunação crescente completa, até que Kiren estivesse minimamente restabelecido.

Nesse período, o servo da Senhora da Magia descobriu o nome daquela que tão caridosamente o assistia, a qual se chama “Schahms” e lhe ensinou seu nome, o qual ela dizia com um imenso sotaque que o fazia soar como “Kirirhen”.

Além disso, começou a entender algumas palavras que ela dizia. Compreendeu, devido às inúmeras vezes que essa palavra foi dita, que “hadjhe” tinha um sentido parecido com o evocado pela palavra “calma” e pela expressão “fique calmo”.

E, pouco a pouco, palavra a palavra, Kiren aprendeu a, rusticamente, se comunicar com Schahms e lhe transmitir um pouco do que sentia e do que queria lhe dizer por meio de sinais quase-mímicos.

Então, passado esse período de recuperação, logo no início de uma manhã, Schahms, dessa vez vestindo uma toga avermelhada, também amarrada na cintura com uma tira de couro, mas dessa vez com os cabelos longos soltos, acorda Kiren e começa, apressadamente, a recolher as coisas que estavam na tenda onde ele ficava.

Nada mais precisou ser dito ou feito para que o andarilho percebesse que era hora de sair dali.

Com dificuldades, Kiren se levantou e, pela primeira vez, pôde olhar seu corpo quase nu, coberto apenas no ventre por um tipo de tecido enrolado que fazia vezes de roupa de baixo.

Em seus braços, suas mãos e suas pernas o clérigo encontrou impressionantes marcas de queimaduras que cobriam sua pele quase completamente.

Ajoelhado, pôs-se a lavar o rosto na bacia de barro percebendo que sua face também se encontrava levemente desfigurada devido às marcas de seu último combate.

Imediatamente, essa imagem trouxe à tona suas memórias acerca da peleja que travou com Dorün, especialmente o momento em que, atingidos pelo relâmpago no forte, entraram em uma espécie de vórtice, sendo libertos em seguida num local desértico onde, para extremo espanto de Kiren, o Mystraken que ele havia invocado em nome da Senhora da Magia perdeu a força, sendo vencido pela Bola de Fogo lançada por Dorün.

Súbito, todo o corpo do andarilho se tensiona com a lembrança do momento em que foi tomado pelas chamas roxas da magia lançada pelo elfo negro e do inevitável desmaio que ocorreu em seguida, enquanto aos ouvidos do andarilho ainda chegava o som dos passos de Dorün, o qual corria gritando que ainda voltaria para finalmente acabar com a infeliz existência de Kiren Cadien.

Passada essa desagradável sensação, que escorria de sua mente, como a água que lhe terminava de banhar a fronte, Kiren, com dificuldades, ergue-se por completo.

Schahms sai da tenda com passos e gestos apressados enquanto diversas vozes graves, claramente masculinas ecoam pelas redondezas.

Kiren, reencontrando seu equipamento intacto, colocado cuidadosamente ao lado do colchonete onde estava deitado, começa a se vestir.

Em instantes o andarilho se apronta e o lençol branco que cobria a tenda onde ele estava é retirado por Schahms.

Tomado por uma surpreendente emoção, Kiren reencontra a luz do Sol, a manifestação máxima e mais sensível do poder de Lathander.

Imediatamente, seus olhos se fecham. Seu corpo dói e as queimaduras voltam a arder. Lágrimas escorregam de seus olhos claros que, cobertos por suas mãos, se abrem lentamente.

Em segundos, sua visão se normaliza e o clérigo vê o infinito mar de areia, brilhante e quase dourado, em que se encontrava, tão imenso que ele quase podia ver nesse lugar claramente terroso a formação de ondas que se vê à beira mar.

(- Estarei em Anauroch ? Será ?), - pensa Kiren.

Em seguida, o servo da Senhora da Magia, pela primeira vez, consegue enxergar com nitidez a figura das pessoas que o salvaram da morte certa, e que dele cuidaram sem, em nenhum momento, lhe cobrar algo por isso.

São homens corpulentos, não muito altos, lembrando anões supercrescidos. Suas peles são bronzeadas como a de Schahms, mas alguns poucos, como a própria, possuem olhos claros como os elfos.

Vestem grossos panos, que lhe cobrem todo o corpo, inclusive o rosto e os cabelos, cobertos por turbantes e lenços, todos com cores fortes, sendo até mesmo o branco absolutamente reluzente e o negro absolutamente tenebroso.

Em suas cinturas, grandes e largas espadas curvilíneas repousam ao lado de sabres e punhais também curvos como o crescente lunar.

Seus cavalos são, em sua maioria, peludos, amarronzados, grandes e também corpulentos, sendo seu dorso quase tão alto quanto seus próprios cavaleiros.

(- Que excelentes guerreiros devem ser esses homens ! – Pensa o andarilho.)

Então, uma a uma todas as tendas são desmontadas e, em questão de minutos, estão todos prontos para partir.

No meio daquela cacofonia, uma voz conhecida chega aos ouvidos de Kiren.

Atendendo ao clamor de Schahms, o andarilho se vira e a encontra com o rosto coberto por um tecido que lhe deixa apenas os olhos descobertos. Ela está sob o dorso de um cavalo, e lhe aponta um companheiro, que lhe oferece sua garupa.

Com uma ajuda do cavaleiro indicado por sua curandeira, Kiren sobe sobre o imenso cavalo de pêlo amarelado.

Assim que se firma sobre o animal, o cavaleiro lhe oferece um turbante como o dele, mas de cor azul escura, como o manto do andarilho, o qual, com alguma dificuldade, Kiren coloca sobre sua cabeça e sua face.

Um grave urro se faz em um ponto à oeste de onde estão. É um homem ricamente vestido que o emite. Todos imediatamente correspondem ao urro, urrando de modo semelhante.

Súbito, a cavalgaria parte, de costas para o Sol. O sudoeste os espera.

(- Para onde vão ?)

(- Quem são ?)

Essas são questões que apenas o tempo poderá responder ao clérigo.