domingo, 18 de março de 2007

Capítulo III: Tenebrosa Chama

O céu se fecha cada vez mais. As nuvens parecem abraçar-se umas às outras e se aproximam do solo, enegrecendo uma tarde que tinha tudo para transcorrer na mais absoluta tranqüilidade, como têm sido ultimamente.

O vento sopra com uma violência raramente vista assumindo uma sonoridade que mais parece o grito das almas despedaçadas nos planos inferiores do Abismo.

A chuva, fria e cortante como finas lâminas, começa a se tornar um sério incômodo para todos que estão ao ar livre.

Os bravos arqueiros da murada frontal do forte se entreolham com visível temor. Nem um único deles foi capaz de disfarçar a sensação causada pelo enregelante olhar do elfo negro.

Alguns deles, mais assustados, agacharam-se atrás da murada. Alguns tremiam, alguns choramingavam e alguns, que não eram mais capazes de decidir como iriam manifestar o pavor que sentiam, simplesmente choramingavam tremendo.

Aqueles que mantiveram sua bravura e seu compromisso com a defesa daquele forte aparentemente condenado, foram os únicos capazes de ouvir os sonoros e graves risos do elfo negro enquanto seu pequeno exército vencia a colina e firmava posição a pouco mais de trinta metros do forte.

Furiosos, esses corajosos homens tencionaram quase que ao mesmo tempo as cordas de seus arcos apontando exatamente para a primeira fileira de guerreiros.

Prontos para atirar, eles inspiraram o pesado e úmido ar, apontaram para a primeira fileira de guerreiros e libertaram, instantes depois, as primeiras doze flechas que cortaram, com um agudo zunido, o tempestuoso céu que todos tinham sobre suas cabeças. Doze flechas. Doze pássaros de madeira que, caprichosamente, voaram ao sabor da ventania correndo por todo o campo e pousando, unanimemente, sem atingir um adversário sequer.

Repentinamente, todos se voltam para o elfo negro que ainda ria. No momento que a última flecha atinge o solo, o que era um riso se torna uma gargalhada.

Mal o som dessas galhofas chega ao ouvido dos arqueiros na murada, gritos de guerra ecoam por todo o forte. Todos os guerreiros do forte se encontram logo atrás do portão. Alguns sobem às muradas com arcos em punho e flechas em suas aljavas. Um brilho de esperança surge nos corações dos defensores do forte, ao mesmo tempo que as ordens do capitão Plahud Esop, líder dessa fortificação, rompem a cacofonia da tormenta. Um breve alívio percorre a tropa defensora até que um reverberante zunido chega aos ouvidos de todos.

Como prateadas aves de rapina em seu bote mortal, dezenas de flechas começam a cair dentro do forte, levando em seu mergulho mortal a vida de três arqueiros, dois guerreiros e a voz de Plahud Esop, que teve sua garganta atravessada mortalmente pela ponta de uma dessas setas negras, a qual atingiu-o em um dos pouquíssimos pontos fracos de sua armadura de batalha.

Repentinamente, com a voz de Plahud, se vão as vozes de todos os guerreiros que agitavam-se dentro da fortificação. Por um breve momento tudo parece calar, tudo se aquieta no âmago dos defensores.

Dessa mesma forma inesperada, um urro desordenado corta o ar e chega aos ouvidos de todos. Um arqueiro que parecia obcecado em acertar o mais certeiro tiro de sua vida naquele elfo negro, não tirando os olhos dele nem por um momento, observa seu alvo erguer a mão direita na frente de seu rosto.

Chamas púrpuras começam a cobri-la do pulso aos dedos. O rosto do elfo se ilumina. Seus cabelos, agora arroxeados, se agitam intensamente. Sua mão desce em direção ao centro de seu tórax e seu braço se estende à frente. Em um instante seu corpo é coberto pelas chamas púrpuras que unem-se em sua mão direita, para, logo em seguida, partir em disparada na direção do portão central do forte.

- BOLA DE FOGO !!!! – Berra o assustado arqueiro.

Menos de um segundo depois, acompanhado de um relâmpago que atinge violentamente a floresta, e de seu retumbante trovão, o portão da fortificação explode em uma imensa, porém fria, flama púrpura, que começa imediatamente a consumir a lenha escura que compunha esse precioso bastião de defesa do forte.

Todos os atacantes gritam com intensa alegria, grito seguido por uma imediata ordem de carga vociferada pelo autor da magia que lhes serviu de aríete, a qual, por sua vez, é seguida por uma imediata movimentação dos numerosos guerreiros que puseram essa construção sob sítio.

Não suportando mais manter-se de pé por suas próprias forças, Plahud dirige seu olhar para o céu, vindo a deitá-lo, imediatamente sobre o portão frontal, assistindo, pouco antes de perder os sentidos, a segunda leva de flechas negras percorrer o céu enquanto os primeiros adversários adentram o local que ele adotou e defendia como se fosse o próprio ventre de sua esposa, à espera do infante espadachim que ele sonhava ter como filho.

Capítulo II: Pré-Sentimentos de um Passado Presente

Foi uma longa jornada. Todo seu corpo dói, padecendo de um cansaço que poucos seres suportariam. Não que tenha acabado de chegar de uma guerra, cavalgada, fuga ou algo assim. Simplesmente, sente o cansaço dos incessantes andarilhos, aqueles que, por mais que pretendam, nunca encontram no repouso, o conforto e a paz que encontram em cada pequeno passo de seu caminhar, em cada palmo de chão que percorrem, em cada singela experiência que vivem, em cada milagre que presenciam apenas pelo fato de estar em um movimento que, mais cedo ou mais tarde, com mais ou menos freqüência, os coloca no tempo e espaço onde os mais incríveis fenômenos acontecem.

E por mais que sua chegada tenha se dado há somente poucas horas, ele já sente saudade da jornada.

Repentinamente um relâmpago e seu retumbante trovão cortam o céu, tirando-o do torpor dos recém despertos. Como se carregada por um balde que foi virado, uma pancada de chuva se faz de tambor, ecoando gravemente dentro do alojamento onde ele acorda.

Mal se recupera do susto que trouxe sua consciência de volta, um grito desesperado chega, muito sutilmente, a seus ouvidos talentosos e bem-treinados. E em seguida desse, outros gritos surgem, gritos de alerta, gritos de guerra, gritos de desespero, todos entremeados por uma voz que se sobressai, vociferando duras ordens.

Com um rápido olhar, vê a porta de seu alojamento, feita de uma madeira velha e com aspecto de umedecida, porém mantida firme por algumas vigas e grandes pregos metálicos. Logo ao lado dela, lá estão: Armadura, bastão, grimório, sua funda, a pulseira que sua mãe lhe deu com as contas élficas que, séculos atrás, foi fabricada por um antepassado, seu livro de orações, mochila, cantil, ou seja, todo seu equipamento de viajante.

Imediatamente sua mão esquerda ergue-se até seu peito. Em um ligeiro movimento, ele o toca, sentindo o acalento de seu amado medalhão, símbolo sagrado de sua fé, onde a chama emoldurada pelas sete estrelas repousa carregando as bençãos e as responsabilidades que possui um servo da Senhora da Magia.

À sua volta, grossas paredes de uma pedra cor de chumbo, cujo aspecto também lhe faz parecer umedecida, lhe trazem, ao mesmo tempo, segurança e ansiedade. Raramente lhe agradou ficar em locais muito fechados.

Poucos móveis compõem seu alojamento. Há a cama, onde repousa, um baú em seus pés e um criado mudo a seu lado esquerdo, todos de madeira. Todos velhos, Todos úmidos E todos muito firmes, apesar de sua simplicidade e aparente fragilidade.

Enfim, não é exagero dizer que todo o ar que ele respira está tomado pelo odor de umidade que domina todo esse ambiente.

Como em um piscar de seus próprios olhos, ele está de pé, armadura vestida, bastão e funda à mão. Súbito, ele abre a porta de seu alojamento e segue à esquerda pelo corredor, em direção à miríade de vozes, passos e sons metálicos que se forma no pátio dessa tão acolhedora fortificação.

Suas pernas se encontram em um compassado e ligeiro movimento a toda velocidade. Sua mente já atingiu o estado superativo que assumem as mentes daqueles que estão prestes a encarar a morte que nos espreita a cada segundo.

No fim do túnel, a escuridão das carregadas e tempestuosas nuvens. Banhando seu corpo, os primeiros espirros da gélida torrente que o céu faz desabar sobre o forte. Em seus olhos, reflete-se o brilho quase cegante de um relâmpago. Em seus ouvidos reverberam, com a gravidade dos surdos tambores dos ogros, dois estrondos absolutamente nítidos e delicadamente desencontrados.

Em sua mente, com a intempestividade do relâmpago que ele acabou de presenciar, um brilho negro se forma...

(- Espere aí ? Dois estrondos ?)

Um agourento arrepio percorre sua espinha...

Capítulo I: Pré-Visões de um Passado Presente

Inúmeros e agudos assobios ecoam ao longe, cortando o silêncio. Com movimentos ágeis, um grupo de pequenas e azuladas aves passa voando por sobre as espaçadas e frondosas árvores, cujos grossos troncos ramificam-se em galhos dos mais diversos tipos, repletos de folhas verde-escuras.

Ao passar na frente do Sol, avermelhado devido à proximidade do poente, e banhar o campo com suas sombras, esses pássaros, cujo canto toma conta das redondezas, ultrapassam as últimas árvores, as quais servem de fronteira para mais uma das diversas florestas que compõem as Terras dos Vales, realizam um grande arco ascendente sobre o forte e seguem, impávidas, em direção ao Noroeste.

O céu, que já manifesta os tons rubros característicos do início do pôr-do-Sol, encontra-se repleto de nuvens que mais parecem algodão úmido esgarçado, fato que, juntamente com o vento fresco que carrega o característico odor de terra molhada, já comunica sobre a chuva que está para chegar.

Com os sentidos ligeiramente inebriados por causa de tão bela cena, um dos arqueiros que montava guarda sob a muralha frontal do Forte demora para perceber um fato: Há uma enorme nuvem de poeira e folhas emergindo das últimas centenas de metros que separam a floresta e o Forte.

Seus olhos se arregalam, estreitando-se em seguida. Sua respiração se torna descompassada. Seu coração começa a bater desordenadamente.

Tentando manter-se calmo o arqueiro se levanta e respira fundo. Mal termina de inspirar o ar para dar o grito de alarme e um relâmpago rasga o céu, ofuscando-lhe a visão. Acompanhado por seu trovão, o raio de luz atinge uma árvore próxima ao muro frontal da fortificação provocando um estrondo ensurdecedor e fazendo-a começar a queimar imediatamente.

Ainda sob efeito do susto que esse evento provocou-lhe, o arqueiro, com toda força de seus pulmões, faz soar seu grito de alarme. Uma negra e carregadíssima nuvem encobre o Sol e tem início uma torrencial chuva de verão.

O vento começa a soprar desordenada e violentamente. Da mesma forma, arqueiros e soldados começam a equipar-se e assumir suas posições para a batalha que parece prestes a começar.

Devido a essas intempéries, a nuvem de poeira diminui e se torna possível ver o que a provocava. Muitos dos homens que agora estavam sobre a muralha com armas em punho preferiam nunca observar tal fato.

Uma numerosa cavalaria, de pelo menos cinqüenta membros com armas em punho, avança colina acima pelos campos frontais ao forte. Atrás dela, um grupo de aproximadamente mais cinqüenta guerreiros de armadura segue em desabalada carreira, carregando as mais diversas armas em suas mãos e os mais diversos gritos de guerra em suas bocas. Sucedendo-os, e avançando rapidamente, vêm pelo menos mais trinta arqueiros, todos de armaduras, arcos em punho e flechas na boca.

Um murmúrio reverbera entre os pouco mais de vinte defensores postados na muralha frontal. Em seguida, todos sentem, cada um a seu tempo e maneira, aquele arrepio característico que precede o momento em que se entrega o próprio coração nas mãos da Morte. Entretanto, isso ainda não era tudo...

Como se carregado pelas mãos de um gigante invisível feito do próprio ar, eis que surge, flutuando por sobre todas as tropas que avançam em direção ao forte, um homem. Esse homem veste um manto escuro, cujo capuz se encontra abaixado. Seus cabelos prateados agitam-se com selvageria, ao sabor dos ventos. Não, ele não é um homem, justiça seja feita. É um elfo. Um elfo negro.