domingo, 29 de abril de 2007

Capítulo VIII – Crepúsculo de um Enevoado Crepúsculo

A chuva, que agora parece estar mais furiosa do que nunca, continua a castigar toda a construção onde já não tão numerosos homens batalham, até o limite de suas forças, em combates nos quais, no presente momento, nada mais se pode fazer além de matar ou morrer.

Os relâmpagos e seus respectivos trovões já se tornaram tão freqüentes e violentos que a sensação que domina a percepção da maioria dos que ali estão quase os faz crer que nada mais há além das muralhas dessa fortaleza, a não ser exatamente uma gélida e tempestuosa plenitude de trevas.

Nos ouvidos de todos, nada além do assobio dos ventos, do ribombar dos trovões, do som da tempestade caindo por sobre o forte. Todas as vozes se calaram. Não há mais gritos de guerra, apenas grunhidos de dor e ódio.

Nas narinas e nas bocas de todos, nada além dos ferrosos e salgados odores e sabores do sangue, do suor e das lágrimas que agora escorrem por sobre todos os menores espaços que existem nessa parcela de terra.

A pele nada mais é capaz de sentir, exceto pelo invernal úmido e cortante vento que, a cada segundo que passa, parece reduzir de maneira notável a sensibilidade que cada ser possui em sua cútis.

E o que dizer dos pobres olhos, cujo castigo imposto pela tempestade os impede quase completamente de exercer a função para a qual eles foram criados ? Poucos são aqueles que tem forças suficientes para mantê-los abertos e, entre esses, os que estão em melhor situação nada conseguem enxergar além das silhuetas daqueles contra quem as chances de sua sobrevivência estão lançadas.

Sentindo, cada vez mais forte, e diretamente sobre seu corpo, os efeitos dessas terríveis intempéries, Kiren volta-se novamente para a situação que ora vive.

Nem ao menos um segundo se passou enquanto a mente de Kiren era inundada pelas mais caudalosas, densas, frias e obscuras águas que já correram pelo jovem leito fluvial de suas vivências. Contudo, para qualquer aventureiro bem-treinado e experiente como os dois antagonistas presentes na fortaleza que ainda se encontra em ferrenha disputa, esse mínimo intervalo de tempo é mais do que suficiente para que qualquer um dos dois tome um curso de ação que o levará diretamente à supremacia nesta batalha.

Com esse fato muito claro em sua mente, Dorün aproveita o breve momento de distração vivido por Kiren e, após uma rápida decolagem, a qual o leva a ficar novamente em uma altura que supera até mesmo aquela que as muralhas desse forte apresentam, guarda sua espada de volta na bainha em um movimento instantâneo, que apenas os olhos mais ágeis são capazes de perceber.

No intervalo de uma piscadela, os olhos de Kiren voltam a deitar-se sobre Dorün que, sorrindo, estende seus braços à frente de seu peito enquanto, ao unir a parte de baixo de seus pulsos, volta suas palmas para dentro e os dedos de sua mão para fora.

Nesse mesmo instante, a simples visão dessa imagem traz à tona, dentro da mente de Kiren, uma breve e distante lembrança da última vez que viu o elfo negro realizar esse movimento. Imediatamente, as intenções do adversário do clérigo de Mystra se tornam mais claras do que qualquer uma das gotas da própria água que cai intensa e incessantemente do céu.

Kiren então guarda seu bastão e murmura, diretamente de sua alma, as orações que ele mesmo, em um momento de intensa inspiração divina, foi capaz de elaborar:

“Que a luz de sua magia,
Cujo brilho excede as mais brilhantes estrelas,
Permita-me vencer o Mal e fazê-lo perceber
O quão arriscado é tentar impor-se àqueles que a veneram.
Senhora da Magia, rogo-te:
Faça me instrumento e canal da nova dádiva de Mystra.
Mystraken.”

Subitamente, assim que se dissipam o brilho de um dos incontáveis relâmpagos que atinge a fortaleza, e o som retumbante de seu inseparável trovão, o mundo todo parece parar.

De costas para uma das muralhas laterais da fortificação encontra-se, em absoluta concentração, Kiren Cadien, o clérigo de Mystra.

Flutuando, mas sem mudar de lugar, em uma posição que o coloca frente a frente com o clérigo de Mystra, Dorün, o elfo negro começa a declamar versos em sua língua nativa, idioma cujo som é tão aterrorizante que a simples audição dessas palavras causa arrepios em todas as criaturas presentes nesse local, à exceção de Kiren.

Conforme o melodioso som da voz do servo da Senhora da Magia, durante a murmurante oração que realizava, começa a carregar as palavras que elaborou para contatar sua deusa e solicitar uma de suas bênçãos, seu corpo começa a ser coberto por uma aura azulada de bordas alaranjadas.

Ao ecoarem por entre os sons da tenebrosa enxurrada que assola esse pequeno recanto das Terras dos Vales, as assustadoras palavras emitidas por Dorün começam a provocar em seu corpo o mesmo efeito que alguns dos que lutam para defender esse forte já presenciaram. Começando pelas palmas de suas mãos, todo seu corpo é abarcado por uma chama arroxeada que parece, aos que já tiveram o desprazer de testemunhá-la, ainda maior do que quando o elfo negro usou-a para explodir o portão principal.

O símbolo sagrado do clérigo de Mystra, onde essa aura encontra seu vórtice, brilha, nas mesmas cores da aura, como um pequeno Sol. Suas mãos assumem, unindo-se do lado esquerdo de seu abdômen, a mesma forma que elas teriam se estivessem segurando uma esfera maciça.

Súbito, toda a aura que cobria o corpo de Kiren converge para suas mãos e forma, no espaço que havia entre as palmas de sua mão, uma esfera de energia que atinge o tamanho aproximado que uma grande melancia teria se esta fosse perfeitamente redonda.

As chamas arroxeadas, que parecem consumir o corpo do elfo negro em uma espécie de fogo frio, repentinamente, voltam a se concentrar nas palmas das mãos de Dorün formando uma imensa esfera de fogo cujo diâmetro permite que ela cubra por completo a parte superior do corpo do avantajado guerreiro que a conjura.

Por um curto espaço de tempo, a impressão que qualquer observador externo teria ao presenciar essas cenas o faria acreditar, com todas as suas forças que, à exceção dos dois seres que conjuravam suas magias mais poderosas, e dos ventos da tempestade, que compunham um imenso tornado exatamente no ponto central da linha que havia entre os dois conjuradores, realmente o universo parara.

Eis então que aconteceu.

Kiren e Dorün, Dorün e Kiren, não se sabe quem descarregou primeiro o imenso poder que acumulara. Ninguém é capaz de afirmar, com verdadeira e absoluta convicção, se foi a enorme e arroxeada bola de fogo lançada pelo elfo negro em direção de Kiren, ou se foi o poderoso raio de energia divina lançado pelo servo da Senhora da Magia em Dorün, aquele que primeiro riscou o céu e abriu a imensa janela que se formou na tormenta que assolava o forte.

O que se sabe é que, no exato local onde ficava o vórtice do tornado que se formava no centro da linha que separava os dois antagonistas, esses poderes sobrenaturais se encontraram iniciando, de imediato, uma batalha particular pela supremacia mágica.

Finalmente, quando tudo levava a crer que ambos poderes explodiriam um contra o outro e se anulariam mutuamente, o surpreendente imponderável ocupou-se de reescrever os destinos desses ex-companheiros de jornada.

De repente, não mais que de repente, como se houvesse sido preparado por um impensável capricho dos deuses, o maior dos relâmpagos que ocorreu durante essa que, por sua vez, foi a maior das tempestades que jamais assolou aquele isolado pedaço da Terra dos Vales, atingiu a enorme massa de poder que se formou no centro do tornado, causando uma explosão que, por alguns instantes, cegou e ensurdeceu todas as criaturas que se digladiavam naquele local, inclusive, levando alguns dos mais feridos combatentes à completa inconsciência e uns poucos inconscientes, que tinham uma mínima chance de sobreviver, ao fim definitivo de suas vidas.

Quando, passado um breve intervalo de tempo, aqueles que além de sobreviver, haviam permanecido conscientes, voltaram a enxergar e escutar, tudo que viram era que nada mais havia na área onde Dorün, o elfo negro, e Kiren, o clérigo de Mystra, travavam seu combate mágico.

Da mesma maneira, não havia mais chuva, relâmpagos ou trovões. Tampouco havia qualquer tipo de tornado ou ventania, tudo que restou foi uma suave brisa.

As nuvens se dissipavam, o céu se abria e a posição que Selune ocupava no firmamento demonstrava claramente que a noite mal acabara de se iniciar.

Eis então que, com a calmaria que sucedeu o duríssimo combate que se travou naquela isolada fortaleza incrustada na fronteira das Terras dos Vales, veio também a trégua, solicitada pelos atacantes, que apenas queriam sair de lá, a qual foi prontamente aceita pelos defensores, que apenas queriam poder se reorganizar para sobreviver.

E tudo parecia, após muito tempo, correr normalmente, aparência essa que foi completamente descartada após um corajoso soldado se aproximar do local onde Kiren e Dorün estiveram quando o imenso relâmpago atingiu o tornado onde seus poderes se enfrentavam. Não é que não houvesse nada onde o clérigo e o elfo estiveram. Havia sim algo nos respectivos locais.

Onde outrora estiveram os corpos de Kiren e Dorün, duas imensas e profundas manchas negras jaziam, grandes sombras em formato esférico, as quais mais pareciam portais, tenebrosas passagens para o vazio absoluto.

sexta-feira, 13 de abril de 2007

Capítulo VII – Entardecer de um Enevoado Crepúsculo

Mal os sons do trovão e o questionamento feito por Kiren ao elfo negro começam a reverberar pela fortificação, a mente do clérigo é lançada para o passado e imediatamente repleta das piores lembranças que o mesmo guarda em sua ainda curta, porém intensa, história de vida.

Das profundezas de sua psique, fugaz e brilhante, como um desses relâmpagos que caem incessantemente no forte que o clérigo andarilho se esforça para ajudar a proteger, surge uma noite escura, eclipse total de Selune, o mais aguardado momento pelos seguidores de Shar, a “deusa negra”, “senhora da perda”.

Em seguida dessa imagem, uma série de outras começa a tomar forma na mente de Kiren, iniciando uma numerosa seqüência de memórias que parecem tomar sua mente como uma turba de saqueadores.

Instantaneamente, Kiren se vê ao lado de seus antigos companheiros de jornada, entre eles Dorün, enquanto buscam a saída de um labirinto de túneis cavernosos existentes abaixo do Vale da Adaga, quando são cercados, atacados, dominados e capturados por seus arqui-inimigos, os elfos negros do Subterrâneo.

Dependurado e preso por correntes e grilhões feitos de um tipo de metal que causa ligeiras, mas muito dolorosas, queimaduras, na companhia de uns poucos companheiros de jornada que sobreviveram ao traiçoeiro ataque dos elfos negros, abandonado em uma estreita torre de pedra quase que completamente lacrada, Kiren padece das mais intensas e contínuas dores que jamais sentiu durante seu viver.

Em um breve momento de total lucidez, Kiren vê Dorün solto e completamente saudável. Tenta chamar pelo nome de seu amigo, mas não consegue. Prestes a desmaiar novamente devido às dores provocadas pelo metal que o prende, o clérigo de Mystra vê seu companheiro elfo negro trocar juras de amor e um lascivo beijo com uma clériga de Shar que parecia ser a líder desse antro de servos da “deusa negra”.

Em mais um brilho relampejante, o clérigo sente seu coração prestes a explodir e se consumir nas furiosas chamas da decepção que toma conta daqueles que são traídos por alguém em quem se confiava absolutamente.

Súbito, mais um intenso brilho, e uma voz familiar, vinda de um longínquo passado chega aos ouvidos de Kiren. Ele não a reconhece, mas seu espírito se enche de força e júbilo ao ouví-la.

Reunindo todo o praticamente nada de forças que lhe restam, o clérigo de Mystra abre seus olhos, os quais são imediatamente feridos pelas luzes arroxeadas que brilham a partir das tochas colocadas para iluminar o local.

Sua visão, inicialmente embaçada, lentamente vai voltando ao mais próximo do normal que é possível para o jovem clérigo naquele momento. Kiren mal pode acreditar.

Com seus olhos abertos e agora nítidos, Kiren se vê colocado cara a cara com seu amado irmão Luke, também clérigo de Mystra, com o qual não se encontrava há mais de dez anos. Sem forças para falar, Kiren apenas deixa que suas lágrimas desçam por sua torturada face.

Desafiando um impensável paradoxo, seu lacrimejar enche-se de uma alegria e de uma tristeza inimagináveis. Alegria, pois reencontrou seu irmão desaparecido há tanto tempo e ainda foi capaz de ouvir sua voz novamente. Tristeza, pois aquela era a última vez em que ouvia sua voz e podia olhá-lo com um mínimo sopro de vida em seu corpo, uma vez que tanto seu peito quanto o de seu irmão foram completamente transpassados por uma lança que o próprio Luke trouxe com ele.

Como se estivesse apenas esperando para olhar nos olhos de seu irmão caçula uma última vez, Luke deixa sua cabeça cair sobre o peito assim que vê as lágrimas correrem com extremo ímpeto pela face, agora sem vida, da pessoa que ele mais amou em sua vida, a qual ele criara como se fosse seu filho, aquela que, segundos atrás, ele teve de matar com as próprias mãos, enquanto os mais detestáveis sacerdotes e seguidores de Shar, incluindo Dorün, assistiam e sorriam debochadamente.

Enfim, em um instante, a centelha que mantinha vivo Luke Cadien se esvaiu nas trevas da amaldiçoada prisão da “senhora da perda”.

Debilitado e alienado de toda e qualquer força interior que possuía, Kiren nada mais conseguiu fazer além de permitir que suas lágrimas e seu sangue banhassem, quase que por completo, os trapos que cobriam seu corpo.

Se pudesse gritar, ensurdeceria a si próprio. Se pudesse lutar, entregaria toda a energia que possuía nesse combate. Se pudesse morrer, tiraria sua própria vida naquele exato momento. Nada mais importava. Não havia mais nenhum sentido, tampouco algum valor em permanecer vivo, a não ser por... a não ser... a não ser por Mystra, sua deusa, a toda poderosa Senhora da Magia.

Assim, naquele exato momento, quando se esvaia a vida que um dia esses clérigos possuíram, como se sua misericórdia houvesse sido mais do que evocada, convocada pelas almas abençoadas dos irmãos sacerdotes, o arrojado e agora liberto em sua morte, Luke Cadien, e o desesperado e absolutamente sôfrego, Kiren Cadien, eis que surgiu, da lança que tirou a vida de Kiren e de Luke, a qual ainda estava atravessada no peito desse último, a luz divina da Senhora Absoluta da Magia, fazendo-se presente, encobrindo tudo e todos, e transportando-os a um local onde nada mais havia senão luz, paz e bem-estar, ou seja, os Campos Elíseos.

terça-feira, 10 de abril de 2007

Capítulo VI - Meio-Dia de um Enevoado Crepúsculo

Da mesma maneira repentina como abarcou tudo e todos, a luz do relâmpago se esvai. A tempestade de chuva, ventos e raios ainda castiga furiosamente o forte. Trovões disputam a supremacia sonora com os inúmeros gritos de fúria, dor, desespero e pavor que emanam das bocas daqueles que ofereceram sua vida em nome da vitória nessa batalha. O odor de terra molhada banhada em sangue e coberta por inúmeros corpos está se tornando quase aceitável, tamanha a sua persistência.

Em um canto isolado do forte, onde dois seres cujos sentidos concentram-se absoluta e somente em si mesmo e em seu nêmesis, nada disso importa.

Com a lendária agilidade de sua raça, Dorün, o elfo negro, move seu braço direito paralelamente ao chão, fazendo com que sua espada longa desenhe um amplo arco em direção ao lado esquerdo de sua cintura. Seu ataque atinge e corta lateralmente o abdômen de Kiren, o andarilho meio-elfo, antes mesmo dele terminar de levantar-se.

Do corte feito em sua armadura, desce o sangue do andarilho. Um efêmero brilho de satisfação surge nos olhos de Dorün, desaparecendo assim que o elfo negro repara que a armadura de Kiren está fechando o corte que ele havia feito na mesma.

(- Novos truques hein, mestiço...) – pensa o elfo negro.

Reagindo o mais rápido que consegue, Kiren posiciona defensivamente seu bastão prateado que, banhado por algum tipo de energia mágica, agora brilha como as estrelas noturnas.

No mesmo instante, Dorün faz sua espada descer em direção ao ombro direito de Kiren, tendo a infelicidade de vê-la ser aparada facilmente pelo bastão de seu adversário, o qual pareceu já ter previsto claramente o golpe.

Com os dentes cerrados e o semblante agressivo o elfo negro segura sua espada com as duas mãos e começa a força-la contra o cajado de Kiren. A força de Dorün é maior que a do andarilho e esse começa a ceder e se ajoelhar devido ao peso que se impunha a ele.

Os braços de Kiren fraquejam ligeiramente, assim com suas pernas e a espada longa do elfo negro se aproxima perigosamente de seu pescoço. Sentindo que se as coisas continuassem assim, sua vida chegaria ao fim, Kiren resolve correr os riscos de clamar por sua deusa em um momento de tão extenuante esforço.

Kiren inspira profundamente, concentra-se o máximo que pode e, com sua voz doce e melodiosa, murmura uma oração:

- Ó maravilhosa Mystra, toda poderosa Senhora da Magia, abençoe seu servo com a força dos maiores guerreiros que já batalharam em seu nome.

Súbito uma luz alaranjada surge no símbolo sagrado que o andarilho carrega em seu peito e, instantaneamente, cobre seu corpo todo. Os olhos de Dorün se apertam, raivosos.

O peso desaparece. Os braços e as pernas do andarilho mestiço se tornam novamente firmes e fortes, e o cansaço que ele sentia parece apenas uma desagradável e distante lembrança.

O rosto de Kiren se abre e ele sorri satisfeito. Mais um relâmpago banha de luz os ferozes antagonistas.

Nesse mesmo instante, em que a ofuscante luz do relâmpago abarca tudo e todos em seu brilho, com um rápido movimento, como se a mesma não pesasse mais do que um graveto empunhado por uma criança, Kiren empurra a espada de Dorün para cima, o que faz com que os braços do elfo negro sejam lançados para o alto, por sobre sua cabeça e para trás de seu corpo, fato que abre por completo as defesas do espadachim que, desequilibrado, dá um desajeitado passo para trás. Era tudo que Kiren desejava.

Fluentemente, como se um movimento fosse a exata e metafísica seqüência do anterior, Kiren, girando seu bastão, golpeia Dorün embaixo do braço esquerdo, atingindo-o, em seguida, com um golpe na boca do estômago, o qual tira Dorün do chão lançando-o, com grande força, por pelo menos três metros, contra uma das grossas paredes de pedras que compõem o forte.

Por isso, Dorün não esperava. A cada golpe do bastão do andarilho, a energia prateada e brilhante que o contorna se concentra em esferas brilhantes, as quais, por sua vez, causam pequenas explosões nos pontos do corpo do elfo negro que são atingidos pelos golpes de Kiren. O impacto e a dor que esses golpes causam são completamente visíveis nas expressões que surgem na face de Dorün cada vez que ele é atingido por essa arma.

Caído, após ser lançado contra uma parede e atingi-la com grande impacto, sentado, com as costas ainda apoiadas na parede e a espada em sua mão direita, colocada no chão como se fosse uma bengala a ajudá-lo a se levantar, Dorün, cuja mão esquerda cobre o local onde o último golpe do andarilho o atingiu, começa a se erguer, dizendo:

- Você melhorou muito desde a última vez, clérigo mestiço...

Lentamente, os olhos do elfo negro começam a subir do chão para o alto, sua visão mapeando todo o corpo de Kiren, que se encontra de pé e com o bastão firmemente empunhado em sua mão esquerda. Chegando ao rosto de seu adversário, o elfo negro percebe que o clérigo parece estar fazendo um grande esforço para conter uma profunda e enorme ira.

Súbito, a boca de Kiren se abre e palavras repletas de ódio e rancor começam a escapar por entre os dentes cerrados do andarilho. Sem gritar, mas falando cada vez com maior raiva, Kiren começa a dizer:

- Por que você nos traiu, Dorün ? Por quê ? Por quê ? POR QUÊ ?

Um relâmpago brilha e seu trovão reverbera por todo o forte, cujo chão encontra-se banhado em sangue e chuva, repleto de lama e morte.

sábado, 7 de abril de 2007

Capítulo V – Aurora de um Enevoado Crepúsculo

Conforme o som daquele nome se perde entre a cacofonia que toma conta daquele bem construído forte, na periferia de uma das inúmeras florestas que compõem a Terra dos Vales, a tempestade volta a ganhar força e fúria, retomando o impiedoso castigo que assola a todos que se encontram nos numerosos combates de vida e morte que tomam conta das atenções daqueles que lá estão.

Inesperadamente, o céu volta a escurecer e mais uma vez, a noite parece deitar-se precocemente sobre esse local. O vento volta a assobiar, frio e úmido, encobrindo todos os sons que até pouco tempo atrás preenchiam o ar. Chega a ser inebriante o odor de terra molhada que se espalha por toda a fortificação. Relâmpagos e mais relâmpagos, acompanhados dos mais assustadores trovões que a maioria dos guerreiros ali presentes jamais presenciou, descem das nuvens negras, grossas e pesadas como chicotes celestiais em busca das almas menos virtuosas.

O elfo negro não consegue evitar abrir um novo sorriso.

Como que paralisado pela visão de algum maldito tipo de espectro fantasmagórico, o andarilho, agora nomeado em alto e bom som – Kiren – leva alguns segundos até recuperar a concentração no processo curativo que estava realizando, tempo mais do que suficiente para que o elfo negro, com seu braço direito estendido ao lado do corpo, seu antebraço compondo com ele um arco de aproximadamente noventa graus, e a palma da mão direita voltada para o chão, aponte seus cinco e incisivos dedos bem abertos na direção do enfermo que Kiren tencionava ajudar. Um relâmpago ilumina os três seres.

Antes que o andarilho pudesse sequer utilizar-se de seus aguçados reflexos, o elfo negro, dizendo rápidas palavras mágicas, faz com que cinco setas de energia se desprendam de seus dedos e atinjam o convalescente, o qual Kiren mantinha em seus braços enquanto se preparava para solicitar à sua deusa que ele fosse curado.

Tudo que Kiren consegue fazer nesse momento é virar seu rosto na direção do bastante ferido abdômen daquele guerreiro e vê-lo, em menos de um segundo, ser coberto por uma intensa luz arroxeada, que faz o andarilho apertar seus olhos, ouvindo-o, um instante depois, ser explodido por completo devido à magia executada por aquele elfo negro.

Os olhos do andarilho se abrem rapidamente e fitam diretamente o rosto daquele que Kiren tentava socorrer. Seus olhos arregalados, sua boca contorcida e seu grito de dor juntar-se-ão a diversos outros e nunca mais sairão da memória do andarilho.

Assim, conforme os olhos do homem perdem o foco e a vida se esvai do corpo daquele valoroso arqueiro, que nada mais queria além de preservar sua vida, se esvai também toda a piedade que, de alguma maneira metafísica, Kiren poderia sentir por aquele ser obscuro.

Com a face coberta de chuva e do sangue que se espalhou por todo seu entorno após esse horrível evento, Kiren inspira rápida e furiosamente, emitindo um alto e raivoso brado que, reforçado por um dos inúmeros trovões que ecoam por esse local, reverbera por todo o forte. De sua boca apenas uma palavra ganha o mundo:

- DOOORÜÜÜN !

Um arrepio, como uma descarga elétrica, percorre a espinha do elfo negro, agora devidamente identificado – Dorün. Nem mesmo ele, acostumado a conviver com os mais cruéis e desalmados seres do submundo deixou de se surpreender com a ira demonstrada por Kiren em sua face e seu grito.

Um relâmpago cai. Sua extrema luminosidade a tudo encobre, deixando visíveis apenas duas silhuetas.

Kiren deixa no solo o corpo do arqueiro, agarrando, no mesmo instante, seu cajado, o qual descansava logo à frente de seus joelhos. Paralelamente, o andarilho começa a se levantar em altíssima velocidade, com toda a fúria que há nesse momento em seu coração. Seus olhos são dois azulados canhões de ira, seus dentes estão cerrados, seu nariz se abre e suas orelhas se projetam para trás. Nunca Dorün imaginou que um dia teria o prazer de ver esse andarilho dessa maneira.

Exatamente no mesmo momento, Dorün, espada longa em punho, é banhado por uma onda de prazer e felicidade, ambos completamente expressos em sua tenebrosa face. Finalmente daria um fim a esse antigo problema. De uma vez por todas.

terça-feira, 3 de abril de 2007

Capítulo IV – Assombrado Brilhante

Finalmente o corredor é deixado para trás e a fria água que desaba do céu banha todo o seu corpo. Esta, junto ao vento que zune e castiga esse forte atingem seus olhos como dardos de gelo, o que torna muito difícil mantê-los abertos. Ao fim de um olhar panorâmico, uma conclusão assalta seu pensamento:

(- Oh... Como gostaria de poder mantê-los cerrados...)

Em um instante, o retrato do caos. Dezenas de homens, incluindo o Capitão Esop, cobertos de flechas e mortos, tendo sido este último presenteado com uma certeira flecha a lhe atravessar a garganta; Dezenas de homens, arqueiros e espadachins em desespero; O portão, aparentemente tão resistente, arrombado e coberto de chamas; Inúmeros guerreiros invadindo a fortificação e ceifando, como quem corta trigo, a vida de qualquer um que se coloca em seus caminhos. Mais uma vez, sua espinha, aliás, seu corpo inteiro, tomado por uma monstruosa tensão, é preenchido por arrepios dos mais diversos tipos.

Inspirando o quanto pode do ar ventoso, úmido, cheirando a fumaça e sangue, que nesse momento cobre o forte, e apelando para os poderes divinos de sua Senhora Mystra, a Deusa da Magia, ele junta forças para elevar sua voz por sobre os gritos desesperados.

Então, no meio do caos quase absoluto, palavras de ordem ganham vulto, ecoando por todo o forte. Por um instante todos, invasores e defensores, param; Os sons da tempestade se esvaem; Não, não é que tudo tenha silenciado. Repentinamente, como se um deus estivesse falando, nada mais é ouvido além da voz do andarilho.

Assim que o som atinge seus ouvidos, uma mudança se faz na face do elfo negro. Em seu outrora calmo, confiante e sorridente rosto, se configura uma carranca. Seus dentes se fecham e se apertam abrindo-se em seguida em um sorriso diabólico. Seus olhos brilham em uma fúria contida, porém contundente, aquela mesma que apresentam os predadores quando encontram sua caça predileta, um presente dos deuses.

Concomitantemente, tudo converge na mente dos defensores. Suas noções militares de estratégia e tática de combate, unidas às experiências subjetivas de cada um, imediatamente os preenchem de um mínimo arremedo de consciência e de uma parca autoconfiança, os quais pareciam irremediavelmente perdidos.

Com a moral ligeiramente recuperada, os defensores voltam-se para a defesa da fortificação com todas as suas forças. A luta começa a se equilibrar, com uma ligeira vantagem para os atacantes, que se encontram em maior número.

Com outra ordem do andarilho, os defensores separam parte de suas forças para levar a seu novo líder todos aqueles que estão feridos, porém vivos. Para esses, o andarilho, imbuído do símbolo sagrado e das orações que rogam pelos poderes de sua deusa, possibilita que muitos dos defensores que estavam fora de combate tenham parte de suas forças recuperadas e possam retornar à batalha.

Assim, pouco a pouco, as forças defensoras começam a fazer frente às forças atacantes. O combate se endurece. O cheiro de sangue começa a tomar conta do ar, que agora já se encontra menos ventoso, mas ainda preenchido de enregeladas gotículas de chuva.

Envolvidos no combate, muito poucos percebem a sombra obscura que ultrapassa a muralha do forte, adentrando no local, e desses, nenhum consegue sobreviver a tempo de avisar mais alguém sobre esse fato.

Súbito, uma ordem, vociferada na desagradável língua secreta dos elfos negros do subterrâneo, é transmitida ao exército invasor. Uma parte de seus soldados passa a avançar na direção da porta do forte de onde saiu o andarilho. As forças defensoras concentram-se e começam a impedir o avanço dos invasores que caminhavam nessa direção. Um furioso combate se inicia, com o próprio elfo negro liderando suas forças e desequilibrando uma batalha que seria muito mais difícil sem sua presença.

Súbito, seus olhos são atingidos por um brilho prateado. Lá está ele. Um aterrorizante sorriso imediatamente se forma em seu rosto ao mesmo tempo que o seguinte pensamento surge em sua mente:

(- Inacreditáveis as surpresas que o destino nos reserva, não é ?)

Como um espectro, o elfo negro se move por entre os combatentes chegando rapidamente à fonte de uma série de brilhos prateados e doces orações que atingem seus olhos e ouvidos.

Uma sombra se faz e começa a crescer atrás do andarilho, que se encontra ajoelhado, segurando em seu colo um guerreiro bastante ferido. Seu pescoço se contorce e seu rosto aparece por sobre seu ombro esquerdo. Seus olhos se arregalam. Sua mente é instantaneamente lançada ao passado, retornando ao presente nessa mesma velocidade. Como se atingido por um relâmpago, seu corpo exprime o choque que sente.

Sobrepondo-se completamente sobre quaisquer outros sons que porventura tivessem como destino os ouvidos do andarilho, a voz sonora, grave e rouca do elfo negro faz ecoar, por todo o forte, um nome. Mais do que isso, o que se ouve é quase uma convocação:

- KIREN !

Imediatamente, um pensamento constitui-se na mente do andarilho, cuja face é, de forma absolutamente repentina, tomada por uma expressão de extrema fúria, a qual esclarece por completo a intensidade dos sentimentos que o andarilho guarda pelo elfo negro que fez seu nome reverberar por toda a fortificação:

(- Não ! Não pode ser ele ! Depois de todos esses anos... Não agora...)