A chuva, que agora parece estar mais furiosa do que nunca, continua a castigar toda a construção onde já não tão numerosos homens batalham, até o limite de suas forças, em combates nos quais, no presente momento, nada mais se pode fazer além de matar ou morrer.
Os relâmpagos e seus respectivos trovões já se tornaram tão freqüentes e violentos que a sensação que domina a percepção da maioria dos que ali estão quase os faz crer que nada mais há além das muralhas dessa fortaleza, a não ser exatamente uma gélida e tempestuosa plenitude de trevas.
Nos ouvidos de todos, nada além do assobio dos ventos, do ribombar dos trovões, do som da tempestade caindo por sobre o forte. Todas as vozes se calaram. Não há mais gritos de guerra, apenas grunhidos de dor e ódio.
Nas narinas e nas bocas de todos, nada além dos ferrosos e salgados odores e sabores do sangue, do suor e das lágrimas que agora escorrem por sobre todos os menores espaços que existem nessa parcela de terra.
A pele nada mais é capaz de sentir, exceto pelo invernal úmido e cortante vento que, a cada segundo que passa, parece reduzir de maneira notável a sensibilidade que cada ser possui em sua cútis.
E o que dizer dos pobres olhos, cujo castigo imposto pela tempestade os impede quase completamente de exercer a função para a qual eles foram criados ? Poucos são aqueles que tem forças suficientes para mantê-los abertos e, entre esses, os que estão em melhor situação nada conseguem enxergar além das silhuetas daqueles contra quem as chances de sua sobrevivência estão lançadas.
Sentindo, cada vez mais forte, e diretamente sobre seu corpo, os efeitos dessas terríveis intempéries, Kiren volta-se novamente para a situação que ora vive.
Nem ao menos um segundo se passou enquanto a mente de Kiren era inundada pelas mais caudalosas, densas, frias e obscuras águas que já correram pelo jovem leito fluvial de suas vivências. Contudo, para qualquer aventureiro bem-treinado e experiente como os dois antagonistas presentes na fortaleza que ainda se encontra em ferrenha disputa, esse mínimo intervalo de tempo é mais do que suficiente para que qualquer um dos dois tome um curso de ação que o levará diretamente à supremacia nesta batalha.
Com esse fato muito claro em sua mente, Dorün aproveita o breve momento de distração vivido por Kiren e, após uma rápida decolagem, a qual o leva a ficar novamente em uma altura que supera até mesmo aquela que as muralhas desse forte apresentam, guarda sua espada de volta na bainha em um movimento instantâneo, que apenas os olhos mais ágeis são capazes de perceber.
No intervalo de uma piscadela, os olhos de Kiren voltam a deitar-se sobre Dorün que, sorrindo, estende seus braços à frente de seu peito enquanto, ao unir a parte de baixo de seus pulsos, volta suas palmas para dentro e os dedos de sua mão para fora.
Nesse mesmo instante, a simples visão dessa imagem traz à tona, dentro da mente de Kiren, uma breve e distante lembrança da última vez que viu o elfo negro realizar esse movimento. Imediatamente, as intenções do adversário do clérigo de Mystra se tornam mais claras do que qualquer uma das gotas da própria água que cai intensa e incessantemente do céu.
Kiren então guarda seu bastão e murmura, diretamente de sua alma, as orações que ele mesmo, em um momento de intensa inspiração divina, foi capaz de elaborar:
“Que a luz de sua magia,
Cujo brilho excede as mais brilhantes estrelas,
Permita-me vencer o Mal e fazê-lo perceber
O quão arriscado é tentar impor-se àqueles que a veneram.
Senhora da Magia, rogo-te:
Faça me instrumento e canal da nova dádiva de Mystra.
Mystraken.”
Subitamente, assim que se dissipam o brilho de um dos incontáveis relâmpagos que atinge a fortaleza, e o som retumbante de seu inseparável trovão, o mundo todo parece parar.
De costas para uma das muralhas laterais da fortificação encontra-se, em absoluta concentração, Kiren Cadien, o clérigo de Mystra.
Flutuando, mas sem mudar de lugar, em uma posição que o coloca frente a frente com o clérigo de Mystra, Dorün, o elfo negro começa a declamar versos em sua língua nativa, idioma cujo som é tão aterrorizante que a simples audição dessas palavras causa arrepios em todas as criaturas presentes nesse local, à exceção de Kiren.
Conforme o melodioso som da voz do servo da Senhora da Magia, durante a murmurante oração que realizava, começa a carregar as palavras que elaborou para contatar sua deusa e solicitar uma de suas bênçãos, seu corpo começa a ser coberto por uma aura azulada de bordas alaranjadas.
Ao ecoarem por entre os sons da tenebrosa enxurrada que assola esse pequeno recanto das Terras dos Vales, as assustadoras palavras emitidas por Dorün começam a provocar em seu corpo o mesmo efeito que alguns dos que lutam para defender esse forte já presenciaram. Começando pelas palmas de suas mãos, todo seu corpo é abarcado por uma chama arroxeada que parece, aos que já tiveram o desprazer de testemunhá-la, ainda maior do que quando o elfo negro usou-a para explodir o portão principal.
O símbolo sagrado do clérigo de Mystra, onde essa aura encontra seu vórtice, brilha, nas mesmas cores da aura, como um pequeno Sol. Suas mãos assumem, unindo-se do lado esquerdo de seu abdômen, a mesma forma que elas teriam se estivessem segurando uma esfera maciça.
Súbito, toda a aura que cobria o corpo de Kiren converge para suas mãos e forma, no espaço que havia entre as palmas de sua mão, uma esfera de energia que atinge o tamanho aproximado que uma grande melancia teria se esta fosse perfeitamente redonda.
As chamas arroxeadas, que parecem consumir o corpo do elfo negro em uma espécie de fogo frio, repentinamente, voltam a se concentrar nas palmas das mãos de Dorün formando uma imensa esfera de fogo cujo diâmetro permite que ela cubra por completo a parte superior do corpo do avantajado guerreiro que a conjura.
Por um curto espaço de tempo, a impressão que qualquer observador externo teria ao presenciar essas cenas o faria acreditar, com todas as suas forças que, à exceção dos dois seres que conjuravam suas magias mais poderosas, e dos ventos da tempestade, que compunham um imenso tornado exatamente no ponto central da linha que havia entre os dois conjuradores, realmente o universo parara.
Eis então que aconteceu.
Kiren e Dorün, Dorün e Kiren, não se sabe quem descarregou primeiro o imenso poder que acumulara. Ninguém é capaz de afirmar, com verdadeira e absoluta convicção, se foi a enorme e arroxeada bola de fogo lançada pelo elfo negro em direção de Kiren, ou se foi o poderoso raio de energia divina lançado pelo servo da Senhora da Magia em Dorün, aquele que primeiro riscou o céu e abriu a imensa janela que se formou na tormenta que assolava o forte.
O que se sabe é que, no exato local onde ficava o vórtice do tornado que se formava no centro da linha que separava os dois antagonistas, esses poderes sobrenaturais se encontraram iniciando, de imediato, uma batalha particular pela supremacia mágica.
Finalmente, quando tudo levava a crer que ambos poderes explodiriam um contra o outro e se anulariam mutuamente, o surpreendente imponderável ocupou-se de reescrever os destinos desses ex-companheiros de jornada.
De repente, não mais que de repente, como se houvesse sido preparado por um impensável capricho dos deuses, o maior dos relâmpagos que ocorreu durante essa que, por sua vez, foi a maior das tempestades que jamais assolou aquele isolado pedaço da Terra dos Vales, atingiu a enorme massa de poder que se formou no centro do tornado, causando uma explosão que, por alguns instantes, cegou e ensurdeceu todas as criaturas que se digladiavam naquele local, inclusive, levando alguns dos mais feridos combatentes à completa inconsciência e uns poucos inconscientes, que tinham uma mínima chance de sobreviver, ao fim definitivo de suas vidas.
Quando, passado um breve intervalo de tempo, aqueles que além de sobreviver, haviam permanecido conscientes, voltaram a enxergar e escutar, tudo que viram era que nada mais havia na área onde Dorün, o elfo negro, e Kiren, o clérigo de Mystra, travavam seu combate mágico.
Da mesma maneira, não havia mais chuva, relâmpagos ou trovões. Tampouco havia qualquer tipo de tornado ou ventania, tudo que restou foi uma suave brisa.
As nuvens se dissipavam, o céu se abria e a posição que Selune ocupava no firmamento demonstrava claramente que a noite mal acabara de se iniciar.
Eis então que, com a calmaria que sucedeu o duríssimo combate que se travou naquela isolada fortaleza incrustada na fronteira das Terras dos Vales, veio também a trégua, solicitada pelos atacantes, que apenas queriam sair de lá, a qual foi prontamente aceita pelos defensores, que apenas queriam poder se reorganizar para sobreviver.
E tudo parecia, após muito tempo, correr normalmente, aparência essa que foi completamente descartada após um corajoso soldado se aproximar do local onde Kiren e Dorün estiveram quando o imenso relâmpago atingiu o tornado onde seus poderes se enfrentavam. Não é que não houvesse nada onde o clérigo e o elfo estiveram. Havia sim algo nos respectivos locais.
Onde outrora estiveram os corpos de Kiren e Dorün, duas imensas e profundas manchas negras jaziam, grandes sombras em formato esférico, as quais mais pareciam portais, tenebrosas passagens para o vazio absoluto.
domingo, 29 de abril de 2007
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2 comentários:
O_O Wow....
*sentada esperando o próximo capítulo*
XD
Hoje, sem comentários bobos e filosóficos, tentando descobrir o por trás do texto. Vou deixar para o próximo capítulo. XD
Eu nem preciso dizer que estou gostando da história, né? :P
Kisses!
A história foi muito boa e os personagens, muito intrigantes!
Até a próxima!!
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